quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Tomo III: A Mula

Zé do Coice, como lhe chamavam os amigos de infância, era homem rude e iletrado. Valia-lhe em tudo a experiência de vida. Anos a fio de montes e vales, debaixo de chuva e vento, a trazer para a aldeia tudo aquilo que lá não havia.

Mais do que transporte, a sua melhor amiga e companheira nunca o abandonava. Sempre fiel e paciente, por caminhos tantas vezes trilhados, Ermelinda - já velhota - não o largava nunca.

Naquela noite de inverno lá iam os dois a caminho da Azinheira. De volta a casa - se é que se podia dizer que tivessem uma - o cansaço já se fazia notar, e o vento e a chuva gelada de Janeiro não davam tréguas.

Zé não podia deixar de pensar porque raios de carga de água não tinha ficado em casa desta vez. Porque é que teimou mais do que a própria mula em ir à vila buscar aquela encomenda? Será que ela merecia que tivesse posto a Ermelinda em risco? Já o seu pai o havia avisado em pequeno que as mulheres são a tentação do Demo, e esta não era diferente das outras. Ele tinha de lhe ir buscar a prenda que havia prometido há já tanto tempo... mas a coitada da mula já não tinha idade para estas andanças, e o Janeiro não queria dar parte de fraco este ano....

Ermelinda, coitadita, lá ia pata-ante-pata, aguentando o peso, a chuva e o caminho. Teimosa como o Janeiro, não ia ela dar parte de fraca. Se o seu amo e senhor tinha decidido levar mais esta carga não seria ela quem o deixaria ficar mal.

Ao dobrar da Curva da Tormenta, mesmo no cimo do monte, quando o vento roda a norte e lhes dá na cara, a coisa complicou. A chuva e o granizo que batiam no nariz frio do homem e da pobre mula pareciam congelar os ossos.

Zé aconchegou-se mais a Ermelinda. A lama do caminho parecia agora uma torrente de lava gelada monte abaixo. Uns passos mais à frente e lá estava ele... o uivo do lobo... mais gelado que a própria chuva.
Num pranto de arrepiar a espinha começaram a fazer-se ouvir os comparsas, mais um ali por detrás, e ali mais outro, e ainda outro... quatro ao que pareçe - pelo menos por enquanto.

Zé tentou apertar o passo à mula. A coitada já não podia muito com o peso quanto mais com o novo ritmo imposto à caminhada.

Apertou mais um pouco... e a mula estremeceu, como que a adivinhar coice pela certa. Nada a que ele não estivesse habituado, mas naquela hora não! Que raio!! Desviou-se do bicho a medo, mais um uivo, tropeçou numa vala, caiu, bateu no calhau errado, e apagou ali mesmo no meio da estrada.

Nada a fazer! Os lobos já na trilha do sangue e Ermelinda coitada que já não podia com a encomenda na lombeira via-se agora privada do amo. Parou, cheirou à direita, cheirou à esquerda. Não sentia lobo por perto. Devem estar longe ainda.

Teimosa como só ela, sabia que solução ali só havia uma. Agarrou no Zé pelos fundilhos das calças à dentada. Inspirou duas golfadas de ar frio para acordar do torpor, e lá seguiu caminho fora como que determinada a não ser almoço para cão danado. Não hoje !

Quando acordou da zoeira, Zé do Coice estava à porta de casa. Era manhã. O sol batia-lhe nas ventas como para lhe dizer que estava vivo, mas ao olhar em redor depressa percebeu que não havia sido um sonho.

Deitada a seu lado estava Ermelinda, com a encomenda da Fernandita ainda presa ao lombo. Mas já sem vida...

A pobre mula foi teimosa até ao fim. Entregou as duas últimas encomendas ao destinatário, e meteu papéis para a reforma.

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