quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Tomo IV: Os Gatunos...

Era noite cerrada. E como noite cerrada que era não via ponta de corno - nem a do nariz quase por assim dizer.

Andava à coca. Que isto de ser guarda não é vida fácil. Ainda há pouco ressonava que nem um mocho e agora, posto o problema, tinha de o achar. Esse gatuno não me escapa !

Pé-ante-pé, lá fui andando pelo matagal fora, lentamente, como quem não quer a coisa.

(mais um ruido).... (silêncio de morte)....

Isto estava bonito estava. Mas contra factos não haverá argumento possível, o gajo andava aí .. e era o dever de um guarda apanhá-lo.

(agora outro mais forte)....

Parecia que o malandro andava a brincar com a morte. Ai mas se o catasse havia de ver como lhas mordia.
Mordia e abanava, q'isto p'ra matar tem de ser como manda a cartilha. Morde-se, abana-se, morde-se mais um bocado, abana-se mais um bocado. Quando o tic-tac deixa de fazer tic, morde-se mais um bocado, e a pouco e pouco nem o tac se sente.. (suspiro)...

Vou p'ra trás daquela moita, hoje o bandido não me há-de escapar !

(já lhe ouço a maquinaria toda a dar horas)....

Deve andar por perto o desgraçado. Se lhe filo o dente ...

(mais um ruido)...

Pareçe mais assustadiço o "quase finado" isto deve estar p'ra breve. Só espero que ele não me ouça, que ontém foi uma correria dos diabos e depois nada.

E eu que não posso correr muito que se me dão as securas todas e depois é a noite inteira a emborcar água.

(mais um)... o desgraçado deve andar ali a cavar atrás do montinho... é agora !!
...
...
Corro, desvio, corro mais, desvio mais ainda, corro, desvio... cabrão do rato ! E fugiu-me outra vez o desgraçado!!!

E desta vez levava uma batata na boca! Mas como é que não o ouvi cavar daquela maneira?!! Que raios! Com o chão gelado como está o tipo deve ter aberto o buraco com os dentes - que de patas não ouvi nada!
Mas fica p'ra próxima !! ahh se fica !!!

Ai as securas ... tá na hora de uma litrada .. e mais uma noite sem o apanhar, e mais uma batata p'ra dar contas de manhã à patroa...

Que desgraçada vida a de cão !!!

Tomo III: A Mula

Zé do Coice, como lhe chamavam os amigos de infância, era homem rude e iletrado. Valia-lhe em tudo a experiência de vida. Anos a fio de montes e vales, debaixo de chuva e vento, a trazer para a aldeia tudo aquilo que lá não havia.

Mais do que transporte, a sua melhor amiga e companheira nunca o abandonava. Sempre fiel e paciente, por caminhos tantas vezes trilhados, Ermelinda - já velhota - não o largava nunca.

Naquela noite de inverno lá iam os dois a caminho da Azinheira. De volta a casa - se é que se podia dizer que tivessem uma - o cansaço já se fazia notar, e o vento e a chuva gelada de Janeiro não davam tréguas.

Zé não podia deixar de pensar porque raios de carga de água não tinha ficado em casa desta vez. Porque é que teimou mais do que a própria mula em ir à vila buscar aquela encomenda? Será que ela merecia que tivesse posto a Ermelinda em risco? Já o seu pai o havia avisado em pequeno que as mulheres são a tentação do Demo, e esta não era diferente das outras. Ele tinha de lhe ir buscar a prenda que havia prometido há já tanto tempo... mas a coitada da mula já não tinha idade para estas andanças, e o Janeiro não queria dar parte de fraco este ano....

Ermelinda, coitadita, lá ia pata-ante-pata, aguentando o peso, a chuva e o caminho. Teimosa como o Janeiro, não ia ela dar parte de fraca. Se o seu amo e senhor tinha decidido levar mais esta carga não seria ela quem o deixaria ficar mal.

Ao dobrar da Curva da Tormenta, mesmo no cimo do monte, quando o vento roda a norte e lhes dá na cara, a coisa complicou. A chuva e o granizo que batiam no nariz frio do homem e da pobre mula pareciam congelar os ossos.

Zé aconchegou-se mais a Ermelinda. A lama do caminho parecia agora uma torrente de lava gelada monte abaixo. Uns passos mais à frente e lá estava ele... o uivo do lobo... mais gelado que a própria chuva.
Num pranto de arrepiar a espinha começaram a fazer-se ouvir os comparsas, mais um ali por detrás, e ali mais outro, e ainda outro... quatro ao que pareçe - pelo menos por enquanto.

Zé tentou apertar o passo à mula. A coitada já não podia muito com o peso quanto mais com o novo ritmo imposto à caminhada.

Apertou mais um pouco... e a mula estremeceu, como que a adivinhar coice pela certa. Nada a que ele não estivesse habituado, mas naquela hora não! Que raio!! Desviou-se do bicho a medo, mais um uivo, tropeçou numa vala, caiu, bateu no calhau errado, e apagou ali mesmo no meio da estrada.

Nada a fazer! Os lobos já na trilha do sangue e Ermelinda coitada que já não podia com a encomenda na lombeira via-se agora privada do amo. Parou, cheirou à direita, cheirou à esquerda. Não sentia lobo por perto. Devem estar longe ainda.

Teimosa como só ela, sabia que solução ali só havia uma. Agarrou no Zé pelos fundilhos das calças à dentada. Inspirou duas golfadas de ar frio para acordar do torpor, e lá seguiu caminho fora como que determinada a não ser almoço para cão danado. Não hoje !

Quando acordou da zoeira, Zé do Coice estava à porta de casa. Era manhã. O sol batia-lhe nas ventas como para lhe dizer que estava vivo, mas ao olhar em redor depressa percebeu que não havia sido um sonho.

Deitada a seu lado estava Ermelinda, com a encomenda da Fernandita ainda presa ao lombo. Mas já sem vida...

A pobre mula foi teimosa até ao fim. Entregou as duas últimas encomendas ao destinatário, e meteu papéis para a reforma.

Tomo II: Farrusco

Por estas alturas o nosso leitor, pessoa perspicaz que é, com certeza já se deve ter perguntado sobre quem é que apanhou a Fernandita, a modos de soslaio, a escapulir de casa aquelas horas para se embrenhar no matagal.

Fui eu, pois claro está. Farrusco de nome. Cão de guarda sempre pronto a morder todo aquele que, por incúria ou percalço, se atreva a meter o pezinho no batatal da Ti Francisca. A minha ama graciosamente chama-me Leão, mas eu sou modesto, Tigre da Malásia chegava perfeitamente !

Ora, posto isto, e apresentado o narrador da história, pode o leitor ficar sossegado, pois que eu - sempre que o extenuante trabalho de guardar as batatas mo permita - não hesitarei em deixar aqui em bom Português que se leia, os acontecimentos e desventuras que se me apresentem dignos de narrar. As aventuras de uma terra que amo profundamente - nos meus sábios 6 anitos - e que pretendo que fique neste blogue imortalizada - ou o que raio que isso seja !

Voltarei a dar notícias ....

Tomo I: Fernandita

Era noite. E como noite que era Fernandita já andava aperreada com o seu Manel. «Que raios o homem que nunca mais me chega a casa!!!».

O Manel da Fernandita, carpinteiro de profissão, passava os seus finais de tarde na tasca do Ti Jaquim.

As mines, e as sandochas de courato, ainda que lhe livrassem o fardo de ter de tratar da janta ao homem depois de um dia de trabalho a limpar a trampa à velha Joaquina do Monte, não lhe livravam a apoquentação de o ter de esperar, pacientemente, todo o santo dia.

Quando finalmente chegava, exausto de tanto levantamento de mine - aquilo custa - e batimento de carta, o pobre deitava-se e "fingia-se" morto até ao amanhecer do dia seguinte. Altura em que lhe dava aquela pancadinha amorosa na nádega esquerda, pegava no martelo, e após - e sempre - o seu segundo copo de tinto e a bucha de pão de codea, lá ia martelar para a obra - fosse ela onde fosse.

Mas naquele dia o Manel não chegava, e Fernandita já deitava contas à vida. «Vou buscá-lo ou não ??» «Que raios o homem mais as mines e a batota!!!»

Se aqueles americanos de um camano ao invés de inventar bombas para andar a matar as gentes inventassem alguma coisa de útil. Um telefone em casa, que lhe evitasse a caminhada de meia-hora pelo batatal da Ti Francisca para poder usar o dela. Aquele batatal a esta hora era um perigo, podia torcer o tornozelo, ou pior, levar uma dentada do Farrusco... «Aquele cão é doido!!»

E o homem que nunca mais lhe chegava a casa, e as horas a passar. «Ele já devia estar na cama!!! Que raios deixar uma mulher aqui em casa neste estado!! E amanhã quem é que se levanta para pegar no martelo ??»

Ao passar a meia noite o som de passos e o cantarolar adivinhavam finalmente a chegada tanto esperada. De um salto levantou-se da cadeira da cozinha e começou a afiar a língua para o pior. «Deves vir bonito deves!!!»

Ao estrondo na porta da frente e à entrada de rompante de Manel seguiu-se o - desta vez um tanto ou quanto anormal - metralhar da Fernandita. «E isto lá são horas homem ?! Que raios podias ter mandado o Chiquito avisar que vinhas mais tarde !!! E isto é coisa que se faça ? Deixar uma mulher aqui sem saber de nada? E vir pra casa a estas horas? E mais bêbado que uma mula? E.... E...E...»

Manel, de rosto vermelho e cara bem cheia de cerveja, olhou-a profundamente. Abriu - ou pelo menos há relatos que o tenha tentado - a boca uma ou duas vezes sem sucesso. Deu os passos milimetricamente necessários e afundou profundamente, de martelo no bolso de trás das calças e a destilar litros e litros por todos os poros do corpo, na cama de casal.

Fernandita, ainda que ultrajada pela tamanha falta de consideração pelas suas dores, não podia dizer mais nada - até porque ele não a ia ouvir mesmo.

Deu-lhe o beijo do costume na testa, pôs o xaile aos ombros, fechou a porta do quarto, e saiu de casa a correr.....

«Será que o Zé esperou tanto tempo ?! Ah que pena, que eu hoje como tou dava-lhe tudo o que ele pedisse e mais um bocadito ainda ...»